sábado, 13 de janeiro de 2024

Fascínio subjulgante

Ele a colocava medo só de ouvir seu nome. Todos afirmavam que era um carrasco, nada justo e as provas eram, extremamente, difíceis. Ela o conhecia apenas de vista, mas torcia para que jamais o conhecesse de verdade. Quem sabe, por sorte, ele pudesse não ser seu professor. De vista carregava uma péssima impressão e, apesar dos pesares, era esta que havia ficado. 

O tempo passava e ela temia a proximidade e a possibilidade de encontrá-lo parado no meio da sala de aula, como um dos seus professores. E como o pensamento atrai e o sentimento cria, aquela sina aconteceu. No seu último ano deu de cara com ele e não tinha como escapar, nem pela manhã, nem à noite. Era ele e pronto! O destino fadado ao fracasso seria certeiro porque com ele não havia misericórdia.

E assim seguiu seu destino, temendo, não entendendo a matéria, indo mal nas provas e sentindo desespero. 

Meio do ano e todo caos estava formado. Sem esperança alguma, sabia que seu fim seria o mesmo daqueles que enfrentaram a forca ou o fogo, em praça pública, se continuasse calada sem coragem de pedir ajuda. 

Confidenciava esse pavor a uns colegas próximos a à sua psicóloga e, se sentia a maior incompetente por não tirar uma nota mediana que fosse. A vontade de frequentar as aulas iam diminuindo cada vez mais e o ódio pela matéria era cada vez mais gigante. Não via solução, nem luz no final do túnel. E não poderia ser reprovada, isso seria a maior vergonha para os familiares e o troféu para seus inimigos, que não eram poucos. 

Até que o diabo resolveu mordê-la e os anjos começaram a rir da decisão patética e previsível que ela pretendia tomar. Porém, pura de coração, não teria a coragem de abordá-lo daquele jeito. Resolveu, juntar o resto de suas forças e  se dedicar mais às aulas dele, mesmo que tivesse que abrir o cérebro para entrar alguma coisa naquela sua cabeça de vento.  E foi assim. 

Todavia, o diabo que a havia mordido, vira e mexe tirava a atenção dela e focava em lugares e coisas que a deixavam magnetizada. O jeito de sentar na beirada da mesa para explicar a matéria destacava as coxas grossas e bem delineadas, mesmo sob o tecido da calça bem cortada. Ao virar para o quadro, ela o fitava esfomeada imaginando o que estaria debaixo daquele paletó. Às vezes, parecia que ele lia seus pensamentos e o tirava, aguçando mais aquela mente atormentada. 

Ao se sentar para fazer a chamada de presença, quando dizia o nome dela, quase não se ouvia a voz abafada, o que piorava, pois ela, várias vezes tinha que aumentar o tom, o que fazia com que ele a olhasse e notasse as bochechas enrubescidas. 

As semanas iam passando conforme o tempo, algumas apressadas, outras entediantes e os pensamentos iam invadindo cada vez mais aquele indivíduo que, aos poucos se tornara um tanto menos comum. À esta altura, ela já havia conjecturado situações inenarráveis entre eles. Porém, as notas continuavam ruins e o desespero bateu à porta. Por sorte não foi só à porta dela, o que a animou deveras e, pela primeira vez, o anjo lhe sorriu. Ele propôs algumas aulas onde explicaria os enunciados das provas, aulas para poucas e seletas pessoas, e neste golpe de misericórdia ela foi uma dos contemplados! 

Sempre fora vaidosa, adorava usar sapatos elegantes e até extravagantes, mas para essa primeira aula, que seria numa das salas do enorme escritório, para não chamar atenção demais, resolveu ir mais simples nos calçados. Eram um total de quatros alunos numa mesa retangular onde ele, sendo o líder, sentava-se na ponta, assim teria a visão de todos e vice-versa. E assim se decorreu a primeira aula. Como tarefa, eles levaram provas já ministradas para fazerem em casa. Aliviada, mal sabia que ainda enfrentaria desafios. Contando com as próximas aulas do mesmo estilo, recebeu a notícia de que, algo havia o desagradado e ele não daria mais as aulas para todos os quatro. Taxativamente, eliminou dois, logo, restaram dois. Desesperada, seu pensamento negativo a colocou na lista dos eliminados, mas o anjo estava de boa veia e ela não foi um dos excluídos. 

Próxima aula apenas dois alunos na mesma sala de reuniões. Agora não teria como fugir, se sentaria mais próxima dele. A produção foi bem mais elaborada. Banho tomado, cabelos penteados, pele macia e muito perfumada. Ao se sentar, sentiram-se os respectivos perfumes que enebriaram o ambiente. O cheiro de cigarros também podia ser sentido, todos ali fumavam na época, e a bala de hortelã aliviava o hálito que, inevitavelmente, ficara próximo. Foi a primeira vez que imaginou verdadeiramente beijá-lo, o que a fez suspirar e sentir o quão frágil aquela situação toda a tornara. No final da aula, ele deu uma prova para que eles resolvessem. Ela se saiu bem e ficou feliz, percebeu que aquilo era recíproco e, o viu como uma presa indefesa perante a aura imponente que a vitória, momentânea havia criado em torno dela. A partir dali, a ideia de uma terceira aula se esvaiu, mas a promessa de que ele estaria ao lado dela no último teste foi anunciada. E ele cumpriu. 

Ali já sabiam, entre eles, que algo os instigava. As almas já haviam sido tocadas e não existia mais beneficência, apenas o resultado interessava e a vontade louca de extravasar todo aquele sentimento que sufocava aqueles corpos. 

E, por mérito, ela foi aprovada. Não houve troca de favores, nenhuma promessa, nenhum contrato. Ela foi para casa, mas no seu íntimo o desfecho não poderia ser esse, não apenas esse, precisaria encontrá-lo outras vezes, nem que fosse por acaso. As paixões não podem terminar assim, e, para si mesma, admitiu-se apaixonada por ele. 

Os dias passavam e a vontade de vê-lo a consumia como febre que faz padecer os corpos doentes. Assim se sentia, insanamente doente, e o único remédio para esse mal era vê-lo, apenas vê-lo. 

Mesmo fraca, levantou da cama e foi, formalmente e pessoalmente, entregá-lo o convite de formatura como forma de gratidão e alívio para sua necessidade. Entrou no elevador, desfilou pelos corredores e chegou até à sala dele, o local onde todas os episódios foram criados em sua mente. Ela o entregou, eles conversaram um pouco e ela se foi, não muito satisfeita, o destino não jogava a favor.  Porém, a história não pode terminar assim. Nenhuma paixão fora em vão até ali, apenas as platônicas, e definitivamente, aquela não se encaixava neste quesito.

E mais uma vez os dias iam passando, uns entediantes, outros menos. O ano ia terminando e ela teria que ir embora, mesmo que temporariamente. Aquilo a angustiava profundamente. A sensação de adeus era a pior e nada a entusiasmava.

Contudo, o diabo, aquele diabo que a mordeu lá no meio desse relato, resolveu arrancar um pedacinho dele. Óbvio que ela não sabia, mas com o convite, agora ele tinha o endereço dela e a sorte havia sido lançada. E numa dessas tardes de verão, abafadas, nubladas, sem graça, onde o chove e não molha só serve para atrapalhar os cabelos, assim que ela havia acabado uma produção mediana, porém alinhada para ir à padaria, inesperadamente, o interfone tocou. Por pouco ela não o atendeu, sempre detestou receber visitas que não avisavam que apareceriam, e de maneira nada entusiasmada e com muita má vontade, atendeu o interfone. Mal acreditava que aquilo estava acontecendo. Nos segundos que o elevador chegava, suas mãos tremiam de nervoso e não encontrava uma posição adequada para fingir abrir a porta com naturalidade. E ele surgia, com um terno cinza bem escuro, cheiro de cigarro misturado com perfume e bebida. 

O que aconteceu ficou entre eles. E jamais ela esqueceu aquele beijo tão esperado e intenso, tão esfomeado e compatível, com gosto de Whisky, saliva, virilidade e paixão. 


Lady 


Música: Let it Happen - Tame Impala